VIVER SEM COMER…

Com o custo de vida a aumentar e os rendimentos a encolherem, muitos angolanos evocam “Zé Du” com saudades e recorrem à “sócia” ou a minidoses para conseguirem adquirir bens essenciais, queixando-se da “inércia” das autoridades para travar a inflação. Recorde-se, em dose inteira e sem recurso à “sócia”, que o MPLA está no Poder há 48 anos.

As dificuldades que os cidadãos (Angola tem mais de20 milhões de pobres) atravessam todos os dias, devido ao elevado e sempre crescente preço dos bens alimentares e à acentuada desvalorização do kwanza, reflecte-se em evocações saudosistas, que trazem à memória o antigo Presidente angolano, o já falecido José Eduardo dos Santos ou “Zé Dú”, como era popularmente conhecido.

Se outrora o fenómeno “sócia”, que consiste em juntar valores para aquisição de um determinado produto, era uma opção, hoje tornou-se um recurso obrigatório para conseguir obter o necessário para alimentar as famílias. Ou seja, da excepção passou a regra.

A aquisição de minidoses de produtos, desde o açúcar, óleo alimentar, sal, sabão em pó ou massa alimentar, tornou-se igualmente uma estratégia habitual para “fintar” os baixos rendimentos e garantir os mínimos de subsistência.

A comercializar o quilograma de feijão a 1.500 kwanzas (1,7 euros), Gisela Paca, 37 anos, vendedora ambulante no Mercado Guarda Passagem, no município de Viana, disse que as dificuldades no país se agravaram na governação do Presidente (não nominalmente eleito) João Lourenço que, acrescente-se, é igualmente Presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo.

“Agora a vida está mal, João Lourenço tem que nos ajudar, no tempo do Zé Dú era diferente, olha o óleo, não sei se para massagem de uma criança ou mesmo para cozinhar, esse óleo são 100 kwanzas (0,1 euros)”, diz apontando para uma minidose de alguns gramas de líquido.

“Estamos a vender assim porque o bidon de 20 litros são 40.000 kwanzas (45 euros)”, justifica.

Exibindo o óleo alimentar dividido em pequenas embalagens de plástico rudimentares, a comerciante contou que a aquisição do óleo naquele formato tem sido recurso de muitos para garantir o “matabicho” ou o jantar, que muitas vezes é a única refeição do dia. E há cada vez mais angolanos a aprender a viver sem comer, se bem que quando estão quase a mostrar que conseguem… morrem.

“João Lourenço vê a população que está a sofrer, tempo do Zé Dú não estava assim, tínhamos, sim, fome, mas esta vez está demais”, lamentou.

Também naquele mercado informal, localizado numa das ruas da zona do Capalanga, a vendedora Joana Neves pediu a intervenção das autoridades para amenizarem a galopante subida dos alimentos.

“Estamos a sofrer, tenham piedade de nós, têm de ter pena do povo, estamos a sofrer”, realçou a comerciante, recordando que uma coxa de frango, que custa actualmente 800 kwanzas (90 cêntimos), é insuficiente para dar de comer a oito filhos num país onde o salário mínimo ronda os 32.000 kwanzas (36 euros) e os agregados familiares têm, em média, cinco pessoas.

“Um monte de peixe de carapau (três peixes) está nos 2.000 kwanzas (2,2 euros), quantos peixes tens de comprar para dividir com os filhos?”, questionou.

Quem acorre ao Mercado da Mamã Gorda, conhecida zona comercial do Distrito Urbano da Estalagem, em Viana, com 50.000 kwanzas (57 euros) ou 80.000 kwanzas (90 euros) não consegue hoje garantir as compras mensais na totalidade, mesmo fazendo “sócia”.

Isabel Raimundo, reformada de 67 anos, levou 80.000 kwanzas à Mamã Gorda para comprar frescos para a casa, e teve de recorrer à “sócia” de coxa de frango, cuja caixa atinge actualmente os 16.300 kwanzas (19 euros).

Com uma outra cliente, angariada por jovens que, nestes locais, assumem essa missão em troca de alguns kwanzas, Isabel Raimundo repartiu os valores para aquisição da coxa de frango, o que lhe permitiu adquirir outros produtos.

“Os preços estão sempre altos, fiz sócia de uma meia de coxa e o restante comprei caixas, fizemos sócia porque o dinheiro que trouxemos não chega. Trouxe 80.000 kwanzas e restaram apenas 5.000 kwanzas, ainda assim as compras não chegam para o mês”, apontou.

Nos armazéns de frescos daquela conhecida zona comercial, clientes e operadores queixam-se de que os preços sobem diariamente. A caixa de carcaças de frango já custa 12.500 kwanzas (14 euros), a caixa de restos da costela de porco, denominada “lapiseira”, está nos 10.900 kwanzas (12,3 euros), a caixa de pescoço de frango a 13.600 kwanzas (15,4 euros) e a caixa de linguiça de 10 quilogramas no valor de 28.500 kwanzas (32,3 euros), valores incomportáveis para a carteira de muitos angolanos.

Entre as centenas de pessoas que ali aguardavam por uma “sociedade” circunstancial ou ocasional, tendo em conta o contexto de crise, encontramos Madalena Mgango que repartia com uma outra pessoa as quantidades de uma caixa de carcaças de frango.

“Comprei carcaça de frango e fiz sócia porque o dinheiro não chega para comprar uma caixa. Gastei 6.050 kwanzas, o dinheiro não chega para comprar peixe e frango e então tive de recorrer à carcaça”, contou.

A grávida de 24 anos lamentou ainda os altos preços dos principais produtos da cesta básica, referindo que as compras que fez são insuficientes para a família.

Para minimizar os efeitos da inflação e poupar nas compras, a cabeleireira Paula Mucoco, trouxe 50.000 kwanzas para repartir com as suas “sócias”.

“Vim fazer compras, mas os preços infelizmente estão muito altos, não conseguimos mais comprar uma caixa de frango sozinhas e temos de fazer sócia, não está mesmo fácil, tudo está muito caro”, salientou a cabeleireira de 35 anos, acrescentando: “Graças a Deus a sócia está a nos ajudar bastante”.

Para fugir aos altos preços, muitos cidadãos optam também por fazer compras, que denominam “apanhados”, ao fim do dia, nos mercados paralelos, altura em que os vendedores querem “despachar” as mercadorias e tornam os preços mais acessíveis.

ESTÁ DIFÍCIL VIVER SEM COMER

Em Luanda, vendedores e compradores dos principais produtos da cesta básica queixam-se da subida de preços, que aumentam todos os dias, e – tal como faziam com o anterior “pai” José Eduardo dos Santos – apelam agora à intervenção do actual “pai” João Lourenço para travar os aumentos… que o próprio “pai” ordenou.

Vejamos o texto que se segue e publicado pelo Folha 8 em 16 de Junho de 2023:

«A vendedora de frescos a retalho Catarina Oliveira assume a preocupação e pede a intervenção do Presidente angolano, igualmente Presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo, para travar a subida dos produtos da cesta básica, que quase duplicaram, receando o agravar da fome em casa. Continua a ser difícil ao Povo aprender a viver sem comer. Mas estão a tentar.

O recurso à “sócia” (juntar valores com outros compradores para adquirir um mesmo produto), cuja adesão “quadruplicou”, é, por isso, cada vez mais uma alternativa para garantir o sustento mínimo.

Num armazém de frescos, na conhecida zona da Arosfram, rua direita do Mercado dos Kwanzas (município do Cazenga) os preços dos produtos são afixados na parede em papéis brancos, e a tinta nítida revela que se trata mesmo dos mais recentes.

Ali acorreu Catarina de Oliveira, com 25.000 kwanzas (33,7 euros), que disse não terem sido suficientes para comprar sequer a metade de produtos que adquiria anteriormente em valores mais reduzidos. Recorde-se que, segundos os donos do país, o MPLA é o povo e o povo é o MPLA.

“Hoje eu vim com 25.000 e fiz apenas ‘sócia’ de rabinho [de porco], uma caixa de carcaça de frango de 12.500 kwanzas [16,8 euros] e fiquei apenas com 4.000 kwanzas em mãos, a situação está mal, tenho filhos, marido sem emprego, vamos fazer como?”, desabafou, em declarações à Lusa.

Sentada à entrada do armazém e ladeada de jovens, que com machados aguçados esquartejavam as carnes frescas, Catarina Oliveira explicou que se socorreu da “sócia”, a que se juntaram mais três compradoras com 5.000 kwanzas (6,7 euros) cada para adquirir a caixa de “rabinho”.

“Antes, com 12.500 kwanzas eu comprava duas a três caixas, Presidente [da República] tem de nos ajudar, pai, está mal tem de nos ajudar mesmo, estamos a confiar contigo pai, ajuda”, apelou.

Naquela superfície comercial, a caixa de carcaça de frango de 15 quilogramas já custa 12.500 kwanzas, 10 quilogramas de rabinho de porco valem 15.800 kwanzas (21,3 euros), a caixa de 10 quilogramas de coxa de frango está a 13.200 kwanzas (17,8 euros), enquanto 10 quilos de fígado de vaca estão em 12.200 kwanzas.

Estes preços, segundo os consumidores, quase que duplicaram, se comparados com os praticados há mais de um mês, ocasião em que a caixa de coxa de frango custava 8.000 kwanzas (10,8 euros), recordou Cláudia Almeida.

“Está tudo alto, anteriormente comprávamos a coxa a 8 mil kwanzas, mas agora está a 12.00 kwanzas ou 13.000 kwanzas, comprávamos o saco de arroz a 7.000 kwanzas [9,4 euros], mas neste momento está a 14.000 kwanzas”, disse Cláudia Almeida.

A enfermeira de 49 anos, que acorreu à zona da Arosfram para adquirir produtos para a casa, apontou a escassez de divisas no mercado como factor para o aumento dos preços, referindo que gastou hoje duas vezes mais do que no mês passado. Mesmo fazendo “sócia”, a profissional de saúde garantiu que “foi mesmo o dobro”.

“Quando cheguei ao armazém, assustei-me com o preço, sinceramente não estava a acreditar”, lamentou. “A situação é preocupante e acho que há pessoas que não vão comer, se as coisas continuarem a subir diariamente há pessoas que não vão comer”, referiu a enfermeira, criticando também a precariedade dos salários.

A subida do preço dos frescos foi confirmada por um dos funcionários do estabelecimento, Vitorino Kanangwa, justificando a medida pela escassez do dólar no mercado angolano e a subida do preço do combustível.

Os preços altos estão a afugentar os clientes e consequentemente reduzir a facturação: “Sim, a procura reduziu, praticamente os clientes começaram a limitar-se por causa dos preços e diminuiu a nossa facturação e esses dias estamos a ter pouca venda”, declarou Kanangwa à Lusa.

Diversos produtos que compõem a cesta básica também são vendidos em grande parte dos armazéns localizados na área que circunda o Mercado dos Kwanzas, um dos mais antigos da capital angolana, onde os preços também dispararam.

“Os preços estão muito alterados, desde o mês passado começaram a subir os preços, aqui o saco de arroz (de 25 quilogramas) já estava a 8.500 kwanzas e agora está a 14.000 kwanzas e está difícil, e depois esses dias temos poucos clientes”, contou Isabel Afonso.

A funcionária do caixa do armazém referiu que a subida dos preços resulta da escassez do dólar, sendo que o arroz, o óleo e o açúcar “estão agora com pouca saída devido aos preços altos”.

A procura por bens de primeira necessidade nesses armazéns é visível pelo número de pessoas que entra e sai do espaço, muitos de mãos vazias e até “indignados” com a subida dos preços, como desabafou Joana Nâmbua Lopes.

“Estamos a sofrer muito, como é que o arroz vai subir até 15.000 kwanzas? Querem nos matar devagar, se querem nos matar que nos matem já todos, a situação está mal, estamos a sofrer muito”, queixou-se.

A “zungueira” Odete Daniel apontou que as vendas foram condicionadas devido ao processo de reordenamento do comércio na capital, e acrescentou que “levou um susto” ao ver o actual preço da caixa de massa alimentar fixado em 5.400 kwanzas (7,2 euros) contra os anteriores 3.100 (4 euros).

“É complicado, já não nos querem na ‘zunga’, a comida é essa que está cara e ficamos como? Vamos morrer de fome”, atirou a vendedora ambulante.

Catarina Oliveira, tal como os demais vendedores e compradores, apontou igualmente a escassez do dólar como uma das razões para o escalar de preços de bens de consumo na capital angolana.»

Folha 8 com Lusa

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